O Pedido Do Morto: 03


Alexandre deu a sua última volta e se preparou para o pouso na varanda da sala. Eis que os seus olhos encontraram, caminhando pelo jardim, um rosto que deveria estar...

Alexandre deu a sua última volta e se preparou para o pouso na varanda da sala. Eis que os seus olhos encontraram, caminhando pelo jardim, um rosto que deveria estar encarcerado. O mesmo rosto que ajudou a todos na escalada dos penhascos da Montanha Solitária e na luta contra um sanguinário clã de harpias. O mesmo rosto que auxiliou na caça aos vampiros e ainda ajudou Zlatan - sem conhecimento dos demais - no furto do Olho de Fogo na casa do tirano líder desses mortos-vivos. Coragem e força resumiam os seus vitoriosos atos. Esteve presente em tantas aventuras, em tantas batalhas... em tantas risadas. Seus atos de amizade, força e coragem, transpassaram a palavra amigo e se acomodaram em irmão, mas o seu último feito tão grotesco... não houve perdão, só exílio.

Talvez por causa da mistura de boas lembranças, ou talvez devido o gosto da traição, a atenção de Alexandre, pelo arredores, evaporou. Continuou voando distraído pelo passado... O seu pé beijou a grade da varanda. O seu corpo rodou a ponto do seu calcanhar se chocar contra o teto, e então caiu, de costas, sobre uma escrivaninha de madeira provocando um som similar ao de um jovem trovão. Desse trauma a dor se instalou em suas costas e ombro. A sua respiração perdeu o compasso e tornou-se ineficaz e ruidosa.

A “explosão” acordou o sogro da viúva que estava a dormir na sala. Ao não entender o motivo da escravinha ter se partido em mil pedaços - ao não entender os gemidos de dor invisíveis - ele tentou soltar a sua voz, mas os seus pulmões, agarrados de surpresa pelo medo, só lhe deram ar suficiente para sussurrar:

-O que é isso? Socorro! Socorro! - suas pernas tremiam e o livro que estava deitado sobre elas foi ao chão.

Ainda invisível, sobre os restos da escrivaninha, e com dificuldade para respirar, Alexandre deixou um pensamento escapar:

-Luz! Luz, o que foi que aconteceu? Não, Luz, o que ele está fazendo aqui? Como escapou? Como? Aquele... traidor!

Alexandre desfez as asas da sua capa com a força de um pensamento e - mesmo com fortes dores - se levantou prontamente com o corpo voltado para a entrada da varanda. Esses movimentos espalharam ainda mais os restos da escrivaninha pelo chão. Os olhos do sogro da viúva saltaram incrédulos.

-Fan-fan-fantasma! - sussurou ainda sem conseguir se mover.

Alexandre sacou o seu escudo e deixou a sua mão apoiada no meio do seu peito, a luz jorrou da sua mão livre. As suas dores evaporaram e com elas o encatamento de Lepettit. Alexandre estava visível novamente.

-NÃO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO. - gritou Lepettit e continuaria se não fosse interrompido por Corcoran.

-Ruminar tais palavras em tão alto tom não irá ajudar. Divida comigo o que aconteceu, pois assim podemos encontrar uma solução. E lembre-se, estamos perto das muralhas, alguém pode ouvir a sua voz e assim seremos descobertos.

-DESCOBERTOS? - Lepettit riu alto provocando Corcoran. - JÁ FOMOS DESCOBERTOS! MIGUEL! - gritou Lepettit para o clérigo.

-Como? - perguntou Corcoran, mas a sua pergunta acabou não sendo ouvida.

Miguel abriu os olhos, o gnomo estava bem a sua frente puxando os cabelos em duas tufas.

-Abaixe esse tom para falar comigo. Enfim, pelo alarde, chegou a minha vez.

-Como? - repetiu Corcoran. - Como fomos descobertos, Lepettit?

-Não é óbvio, Corcoran? Foi Zlatan, certeza. Se eu tivesse ido primeiro teria posto aquele tolo na linha. Alexandre peca sendo leviano com aquele halfling!

Lepettit negou com a cabeça, com os dedos, penteou os cabelos para trás e, com uma voz sem ar, disse:

-Não foi Zlatan...

-Não?! - falou Miguel pego desprevenido. - Foi... Alexandre? Teremos que rever esse título de líder.

-O que aconteceu? - perguntou Corcoran com um rosto de espanto. - O que você viu através de Preto?

O mago ignorou a pergunta de Corcoran outra vez e, após respirar e recuperar o seu tom natural, disse:

-Você tem que ir agora, Miguel. Nós iremos também, mas por outro caminho. Teremos que improvisar, para variar...

-Do resto do plano, o que muda? - perguntou Miguel deixando escapar um sorriso de canto com poucos dentes.

-Os vigias perto da casa já notaram o barulho. Alguém está indo em direção da casa e pela arma em punhos já notou a presença de Alexandre. É questão de tempo para o alarme soar.

-Você não respondeu a minha pergunta - falou Miguel.

-...

-Do resto do plano, o que muda? - repetiu.

-Só a quantidade de inimigos - lançou os seus olhos para o chão, sussurrou algo amaldiçoando o seu destino e então continuou. - SOMENTE!

Com dentes cerrados Miguel riu lembrando das suas preces e falou:

-Minha oração foi atendida. Obrigado, meu Senhor, por afiar esse desafio! Agora, só agora, ele está mais apropriado para o meu nome.

Com esse mesmo sorriso, Miguel esticou a sua mão direita. Lepettit repetiu as estranhas palavras e, através de um tapa na mão de Miguel com toda a sua força, lançou seu encantamento. O clérigo nada falou ou agradeceu enquanto o seu ser se tornava invisível. Foi possível, apenas, ouvir o ranger da armadura e os passos de Miguel se dirigindo para as muralhas. O monge olhou para o estressado mago:

-O que você imagina que serão os frutos dessas sementes de decepção? Lepettit, liberte-se ou elas se provarão como mais um inimigo.

Lepettit apenas respondeu balançando a cabeça positivamente, mas as suas mãos voltaram a puxar os seus cabelos. Esse ato mais parecia uma tentativa de arrancar a frustração que o implodia.

Um velho conhecido de Alexandre entrou pela varanda. Em sua pele não crescia cabelo ou pêlos, mas sim vermelhas escamas. Esse meio-homen possuía cauda, olhos amarelos e o rosto de um jovem dragão. O seu nome era Dovatahuim. Alexandre viu vapor saindo entre os dentes desse seu antigo amigo, um aviso, sua expiração estava prestes a se transformar em chamas.

O sogro da viúva, ao ver o meio-dragão, jogou o seu peso para trás. A cadeira perdeu o equilíbrio e o derrubou com as costas a beijar o chão. A dor acordou a memória dos seus músculos e então ele saiu engatinhando em disparada, como um felino assustado, para o interior da casa.

-GUARDAS! GUARDAS! - gritou. -SOCORRO!

Eis que Dovatahuim vomitou as suas chamas na melhor fonte de combustível que avistou: nas estantes recheadas com valiosos livros. O fogo começou a dançar sobre esse móvel consumindo-o. Uma fumaça cinzenta nasceu, escalou sobre as paredes, rastejou sobre o teto, e, ao escapar pela janela, fugiu buscando ares mais altos. O cheiro de papel e madeira queimada inundou a sala.

-Alexandre?! De todos os membros do grupo encontrei logo você?! Onde estão os outros?