-Senhores! Preciso lembrar da urgência da nossa missão? Já esqueceram do pagamento? - perguntou Alexandre olhando para Lepettit. - Ou pior, já esqueceram do olhar determinado daquele que pediu a nossa força emprestada? - perguntou olhando para Miguel. - A alma daquele pobre homem... sua vontade de proteger os seu familiares foi tamanha que venceu até a morte. Lembram do cheiro que o rondava? Talvez não do cheiro, mas tenho certeza que lembram do brilho que emanava dos seus olhos. Ou a vontade em suas palavras de salvar os do seu sangue. Amigos, eu tenho que lembrar vocês do motivo de estarmos aqui? Nós temos que proteger os familiares daquela pobre alma, proteger do demônio que o grupo dele a muito tempo derrotou e agora retornou mais forte querendo nada além de vingança. Preciso lembrar vocês até disso? - perguntou Alexandre com um olhar de quem não queria ouvir uma resposta; e, após o tempo de três longas respirações, falou o que sabia que agradaria. - Depois que terminarmos isso eu posso até ser o juiz desse embate; caso queiram.
-Justo - respondeu Miguel como se tivesse escutado apenas as últimas palavras. - Aposto o meu símbolo divino contra todos esses seus rascunhos e rabiscos! Farão uma bela fogueira.
-Você vai se arrepender por ter chamado de rabisco, Miguel. Temos um acordo! Com esses termos, temos um acordo! E não se arrependa - falou Lepettit com um meio sorriso. - Depois dessa aventura, Alexandre como juiz e testemunha, você terá a sua segunda derrota!
-Senhores! - falou Alexandre percebendo os olhares, percebendo o pesar da mão de Miguel sobre a sua espada e Lepettit a folhear, lentamente, as páginas do seu grimório. Mesmo sem conhecimento arcano, Alexandre sabia em qual página Lepettit havia parado. Aqueles símbolos e linhas reproduziam a magia preferida do mago: Bola de Fogo.
-Senhores! - repetiu com um tom mais forte.
-Essa segunda derrota pode esperar, Alexandre - falou Lepettit fechando o grimório, respirou fundo tentando apagar as palavras arcanas da sua mente, relembrou do plano e disse. - Olhem, quando Miguel chegar à casa eu deixarei você, Alexandre, invisível e então eu e Corcoran vamos sair daqui. Fiquem dentro da casa! Irei avisar o melhor momento para levar a viúva e os seus filhos para o porto.
-Lepettit, calma, antes disso, escute minha última sugestão. Deixe-me ir primeiro. Com minha capa chegarei antes que Zlatan e assim poderei vigiá-lo - falou Alexandre.
O mago Lepettit viu pelo pedido de vidro de Alexandre, notou que o que ele queria mesmo era evitar deixar Miguel e Zlatan em uma mesma sala, isolados do grupo, por tanto tempo. Miguel falou:
-Melhor assim. Vigie-o, e lembre-se: qualquer deslize dele mancha os nossos nomes e pode queimar a boa fama que criamos com tanto esforço até agora. Tome cuidado. Já que você vai primeiro, eu irei comungar, só me perturbe se for a minha vez de ir, gnomo - falou o clérigo se afastando do grupo com um sorriso satisfeito por ter conseguido, enfim, marcar a sua revanche.
Miguel se aproximou de uma idosa árvore, deu as costas para ela, sacou sua espada, longa o bastante para ganhar, em altura, da metade do seu corpo. Tocou o chão com a ponta da sua lâmina e desabou, sem cerimônia, sobre os dois joelhos. Com os olhos fechados, e através de murmúrios, ele pedia fervorosamente, a sua bússola espiritual, a orientação para mais um dia de glória.
Dando pequenos e rápidos pulos, fracos ao ponto de quase não tirá-lo do chão, e cada vez com um pé diferente, Corcoran se aproximou de Lepettit e Alexandre. Chegou bem no momento que o mago Lepettit trocou de idioma. Agora as suas palavras não possuíam origem de um país conhecido pelo mapa dos homens. Elas sobreviviam apenas na mente daqueles que se atreviam a decifrá-las até serem desencarceradas, soltas ao ar, para romper alguma corrente da realidade. No ser do monge Corcoran, um grande admirador do mundo arcano, uma pensamento brotou:
“Esses sãos os versos para deixar alguém invísivel? Impressionante! Palavras arcanas possuem tanto poder. Não, palavras possuem poder. Elas libertam” - olhou para a marca dos seus pulsos. “Elas aprisionam. Os grilhões que me prenderam apenas obedeciam ao seu dono. E escravo, foi a palavra usada contra mim...”
Alexandre estendeu a mão esquerda, em punho, para receber o presente de Lepettit. Sua capa branca rasgou-se - silenciosamente - em duas e se alongou horizontalmente. O que era tecido tornou-se: ossos, músculos, pele e penas brancas como nuvens secas. Esse conjunto revelam a segunda identidade da capa: asas celestiais. Os pulos de Corcoran cessam, o seu queixo cai. Não era a primeira vez que as assistia nascer, mas o seu ser não cansava de admirar o desabrochar daquele milagre.
Logo ao terminar as palavras, Lepettit respondeu a mão do seu amigo com um tímido soco. Alexandre desapareceu como se sua presença tivesse sido nada mais do que uma miragem. A boca de Corcoran caiu mais um degrau. Os olhos do monge iniciaram uma caçada à existência de Alexandre, busca em vão. Diferente da capa de Zlatan que o camuflava no ambiente - mas permitem ainda que olhos treinados o encontre - a magia de Lepettit escondia o corpo de tal forma que era impossível rastrear, com um olho mortal, qualquer traço visual.
-Quando isso terminar vou voltar para minha terra natal e gastar a minha parte abrindo uma escola de magia. Não esqueçam de me visitar - falou Lepettit para Alexandre e Corcoran.
-Vai ser um sucesso. Certeza! - falou o homem invisível e após uma forte expiração continuou. - Que a Luz nos proteja, e nos abençoe nessa jornada! Amigos, ou melhor, irmãos, vou na frente. Espero por vocês na casa da jovem senhora!
O monge nada disse, a sua admiração pela magia o distraiu da conversa. Essa mesma distração fez, ainda, com que ele não calculasse o que vinha logo em seguida... Eis que um forte vento nasceu entre os três, carregou folhas e areia em todas as direções. Lepettit se antecipou, com uma mão ocultou sua boca, nariz e ainda manteve firme os seus óculos, já a outra, após guardar em sua sacola o seu grimório, agarrou firme a sua vassoura. Mas o rosto do distraído monge… esse não teve proteção...
Dando tapas na parte mais alta das costas de Corcoran, Lepettit falou:
-Em boca fechada não entra folhas.
-Sábias... palavras, sábias palavras... - falou Corcoran rindo entre tosses e com os olhos lacrimejando. -Essa lição, eu aprendi... Espero que sim.
Lepettit riu da resposta do amigo e então voltou a sua leitura. Corcoran - após se recuperar - retornou aos seus exercícios. Já Miguel permaneceu imerso em suas orações.
Voando invisível sobre as muralhas, Alexandre entrou em Quermarpolis. Lá das alturas ele observou pontos de luz, tochas e fogueiras, e juntas a elas, sentinelas. Constatou que nada além de soldados perambulavam pela cidade a essa hora; os demais cidadãos estavam recolhidos em suas casas, descansando, esperando o nascer do próximo árduo dia. Então os seus olhos encontraram a mansão de pedra da viúva. O tamanho da casa tornava possível acomodar mais de vinte pessoas, fora os servos. O florido jardim era imenso a ponto de uma caminhada nos seus domínios, aos olhos de um médico, ser diagnosticada como um excelente exercício.
O canto de um pássaro chamou a atenção de Alexandre e foi então que ele encontrou o corvo de Lepettit em um carvalho dentro do jardim. Mergulhou com as asas abertas, descendo lentamente, fazendo círculos cada vez mais baixos. Apenas uma luz respirava e vinha da sala de leitura no térreo, era uma mensagem deixada propositalmente pela viúva, um convite, a porta de entrada para os hérois que lhe ofereceram ajuda.