O Órfão
Beatriz subiu lentamente as escadas do mosteiro Debonízio. A delicadeza dos seus passos possuía um tom maternal. O motivo desse zelo estava adormecido entre os seus braços, um menino órfão que perdera tanto o nome como os pais devido às guerras que se alastravam, feito praga, pelas fronteiras de Ignélia. A criança dormia enrolada unicamente por um cobertor de cor marrom cinza que escondia a sua pele morena do vento frio da noite. Sua cabeça possuía apenas um punhado de fios pretos que mal chegavam a ocultar alguma parte da sua pele. As suas pálpebras eram véus inchados cobrindo os seus olhos. E esse sintoma, sempre que observado por Beatriz, pareciam garras a arranhar a sua paz interior, mas essa sensação não emergia provocada só por empatia ou por compaixão, ou mesmo por pena; não, dentro dessa mistura - a ferver em seu peito - existiam gotas também de dois estranhos desejos: o desejo de contemplar aqueles olhos e o desejo de ser admirada por aqueles olhos... admirada como mãe.
No topo da escadaria, a alguns passos do portão do mosteiro, ela parou. Olhou para a criança e notou a sua respiração. A melodia continuava lenta e ritmada, denunciando que o sono permanecia intacto, como ela queria. E foi assim, hipnotizada pelo trabalho dos pulmões do pequeno, que ela imergiu em suas memórias. Dentro da sua biografia, ela procurou - como um inquisidor - o réu que lhe impediu de ter um filho. A sua busca era pausada apenas pelas suas longas e pesadas respirações… lembrava de tantas tentativas... de tantas simpatias a que se submeteu. Será que o que lhe faltou foi fé para que elas dessem resultado? Não, tinha certeza que isso não era verdade, talvez todas aquelas sementes tenham tido o azar de terem sido lançadas em solo infértil. Ou será que essas sementes nunca tiveram uma centelha de vida? É, devia ser isso - pensou Beatriz. O responsável só poderia ser o órgão entre as pernas do seu marido, não o dela. A culpa era dele, daquele homem que aos poucos se afastou do templo, que teve a insanidade de descartar a fé por causa de algumas infelicidades que ocorreram em sua vida. Todo esse mal deve ter sido uma lição por ter dado as costas ao divino. Uma maldição.
Eis que, sem pedir licença ou mesmo aviso, o vento carregou os cabelos ondulados e castanhos de Beatriz para frente do rosto e desprendeu uma lágrima sobre o seu nariz que acabou por cair sobre a pele macia da criança. A criança, em resposta, acorda - talvez pelo peso da lágrima ou talvez pela força do vento - e solta a voz, em choro, ao sentir o que emanava da pessoa que o segurava. Esse lamento arranca Beatriz dos seus pensamentos. Entre soluços e lágrimas, ela balança suavemente o corpo enquanto alisa a cabeça do recém-nascido, tentando confortá-lo. A cada afago sua mão desce mais próximo aos olhos. Até que os seus dedos param exatamente sobre eles…